12 de julho de 2020

A OFERENDA (conto)


 

Precisava partir, não poderia ficar mais ali, não era seu lugar, mas teimava em ficar mesmo sabendo que tudo havia acabado, não admitia em ir, não admitia ter acabado.

Aceitava a humilhação, calado, achando que uma hora tudo voltaria a ser como antes, que a vida só estava vendo como reagiria a um fato daqueles, como seria sua resiliência a uma traição, se poderia perdoar e seguir em frente e recomeçar, mas no mesmo lugar, com as mesmas pessoas, tudo voltaria a ser como antes.

Era só uma fase, uma experiência ruim que mais tarde seria vista como lição de vida e superação e nada mais.

Já eram passados dois anos e nada de mudar, as madrugadas eram traumáticas e longas, os pensamentos vinham de uma forma não muito pacíficos, alguns davam medo, parecia que seus instintos afloravam com toda aquela situação, pensava em morte, pensava em matar, em se matar, em acabar com vidas. Na madrugada só trevas...

Não havia mais diálogo, estava tomado pelo torpor, e uma decisão precisava ser tomada, ou o resto de sua dignidade iria pelo ralo, já não havia sobrado muito mesmo, mas, quem sabe, poderia salvar aquele resto e reerguer-se como ser humano e continuar aquela vida insana e sem sentido a qual se propusera a viver.

Ela tinha 35 centímetros, bem amolada, brilhava e ele via seu rosto nela, a usava para cortar as carnes dos churrascos, malpassadas, vertendo sangue, ou aquele caldo vermelho parecendo ser sangue, ele se deliciava com aquilo, saboreava como algo que lhe dava prazer...

Decidiu, era aquela hora ou nunca mais, não queria passar mais madrugadas acordado pensando naquilo, preferia a morte ou matar, mas iria se livrar daqueles pensamentos colocando em prática seu plano, pensado e analisado com cuidado.

Aquela noite havia lua no céu, cheia, mas também muitas nuvens, o clima era frio, outono, porém uma noite bem gelada, assim como estavam seus sentimentos, só pensava em cometer aquele ato e nada mais, não poderia passar daquela noite.

Saiu então pela rua, caminhando vagamente, ninguém para vê-lo, mesmo assim procurava a calçada onde haviam mais árvores e sombras, sempre que ouvia algum barulho se escondia, mas já tinha saído de casa colocaria o plano em execução.

Entrou naquele terreno e pegou o que procurava, era um carneiro bem novinho, um cordeirinho. Pronto, já tinha sua presa para o sacrifício e assim poderia poupar aquela jovem a qual tinha mirado antes para o ritual, aquela jovem adolescente, virgem, pura, que seria usada como oferta e assim poderia resolver seu problema com seu deus.

Em um terreno afastado, no meio do mato, num lugar que ninguém ia por ser só mato fechado, ele tinha feito sua trilha e no meio daquele pequeno matagal fechado ele construíra um altar. Velas, bebidas, perfumes, ervas e uma taça.

O cordeirinho não berrava, pois estava adormecido por uma substância que ele havia lhe injetado, porém o sacrifício deveria ser feito com o animal vivo e acordado. Esperou o efeito passar, e com o animal amarrado, ele todo trajado com suas roupas apropriadas, segundo ele, iria acometer o animal iniciando o ritual.

Velas acesas, incensos acesos, tudo preparado, ele começa sua oração macabra invocando espíritos que ninguém ouvira falar, tudo isso em um livro que encontrara numa casa abandonada alguns anos atrás e foi assim que suas madrugadas começaram a ficar intermináveis, com tudo aquilo na cabeça, ele queria mudar de vida e achou que fazendo aquele ritual sua vida iria melhorar, encontraria um emprego bom com um salário excelente, conseguiria a mulher dos seus sonhos, compraria o carro mais foda da cidade e seria visto por todos como “o cara”, não seria mais humilhado e todos iriam puxar seu saco.

Ao erguer a faca, aquela que ele usava para cortar as carnes dos seus churrascos, sentiu correr em seu peito um liquido quente e vermelho, olhou bem e viu que sangrava, estava tão extasiado que nem ouviu e nem percebeu o tiro que levou. Olhou de lado, era o dono do cordeirinho que o vira pegar o animal e o segui até ali, amedrontado atirou contra ele.

Caiu por terra, seu plano não deu certo, voltaria a ser humilhado, agora em uma prisão, nunca mais conseguiria o que procurava e se arrependeu de ter encontrado aquele livro que virou sua cabeça e transformou sua vida.

O dono do animal era o dono do livro e terminou ele mesmo o ritual, mas não foi o cordeiro a oferenda...


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